segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Muriel


Às vezes se te lembras procurava-te

retinha-te esgotava-te e se te não perdia

era só por haver-te já perdido ao encontrar-te

Nada no fundo tinha que dizer-te

e para ver-te verdadeiramente

e na tua visão me comprazer

indispensável era evitar ter-te

Era tudo tão simples quando te esperava

tão disponível como então eu estava

Mas hoje há os papéis há as voltas dar

há gente à minha volta há a gravata

Misturei muitas coisas com a tua imagem

Tu és a mesma mas nem imaginas

como mudou aquele que te esperava

Tu sabes como era se soubesses como é

Numa vida tão curta mudei tanto

que é com certo espanto que no espelho da manhã

distraído diviso a cara que me resta

depois de tudo quanto o tempo me levou

Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid

havia as ruas as pessoas o anonimato

os bares os cinemas os museus

um dia vi-te e desde então madrid

se porventura tem ainda para mim sentido

é ser solidão que te rodeia a ti

Mas o preço que pago por te ter

é ter-te apenas quanto poder ver-te

e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te

Sou muito pobre tenho só por mim

no meio destas ruas e do pão e dos jornais

este sol de Janeiro e alguns amigos mais

Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo

pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te

Eu aprendi a ver a minha infância

vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos

e penso que se bach hoje nascesse

em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior

que esta mesma tarde num concerto ouvi

teria concebido aqueles sweet hunters

que esta noite vi no cinema rosales

Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem

E penso que se nunca a bem dizer te vejo

se fosse além de ver-te sem remédio te perdia

Mas eu dizia que te via aqui e acolá

e quando te não via dependia

do momento marcado para ver-te

Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te

e antes de chegares já lá estavas

naquele preciso sítio combinado

onde sempre chegavas sempre tarde

ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses

se ausente mais presente pela expectativa

por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente

Mas sabia e sei que um dia não virás

que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste

ou até se exististe ou se eu mesmo existi

pois na dúvida tenho a única certeza

Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?

Aquela hora certa aquele lugar?

À força de o pensar penso que não

Na melhor das hipóteses estou longe

qualquer de nós terá talvez morrido

No fundo quem nos visse àquela hora

à saída do metro de serrano

sensivelmente em frente daquele bar

poderia pensar que éramos reais

pontos materiais de referência

como as árvores ou os candeeiros

Talvez pensasse que naqueles encontros

em que talvez no fundo procurássemos

o encontro profundo com nós mesmos

haveria entre nós um verdadeiro encontro

como o que apenas temos nos encontros

que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes

Isso era por exemplo o que me acontecia

quando há anos nas manhãs de roma

entre os pinheiros ainda indecisos

do meu perdido parque de villa borghese

eu via essa mulher e esse homem

que naqueles encontros pontuais

Decerto não seriam tão felizes como neles eu

pois a felicidade para nós possível

é sempre a que sonhamos que há nos outros

Até que certo dia não sei bem

Ou não passei por lá ou eles não foram

nunca mais foram nunca mais passei por lá

Passamos como tudo sem remédio passa

e um dia decerto mesmo duvidamos

dia não tão distante como nós pensamos

se estivemos ali se madrid existiu

Se portanto chegares tu primeiro porventura

alguma vez daqui a alguns anos

junto de califórnia vinte e um

que não te admires se olhares e me não vires

Estarei longe talvez tenha envelhecido

Terei até talvez mesmo morrido

Não te deixes ficar sequer à minha espera

não telefones não marques o número

ele terá mudado a casa será outra

Nada penses ou faças vai-te embora

tu serás nessa altura jovem como agora

tu serás sempre a mesma fresca jovem pura

que alaga de luz todos os olhos

que exibe o sossego dos antigos templos

e que resiste ao tempo como a pedra

que vê passar os dias um por um

que contempla a sucessão de escuridão e luz

e assiste ao assalto pelo sol

daquele poder que pertencia à lua

que transfigura em luxo o próprio lixo

que tão de leve vive que nem dão por ela

as parcas implacáveis para os outros

que embora tudo mude nunca muda

ou se mudar que se não lembre de morrer

ou que enfim morra mas que não me desiluda

Dizia que ao chegar se olhares e não me vires

nada penses ou faças vai-te embora

eu não te faço falta e não tem sentido

esperares por quem talvez tenha morrido

ou nem sequer talvez tenha existido


Ruy Belo

1 comentário:

C.M.Lx disse...

Simplesmente incrível!!!!