terça-feira, 27 de novembro de 2007






A paixão é o verbo amar no gerúndio. Enquanto o amor por si só, etimologicamente é construído apenas a partir do belo e do digno, a paixão diferentemente do amor poderá ter sua constituição no bem e no mal, enquanto o amor não julga e se compadece resignado, a paixão é o impulso criativo da perpetuação da vida. Amar está desligado do tempo, não tem urgência e não produz mais do que uma ou duas histórias bonitas. A paixão dilacera, corrompe, não respeita os dias, pois vive e se alimenta apenas do segundo. A paixão está no movimento e na continuidade cíclica que persegue o objecto desejado.
Toda paixão é desmedida, a paixão é obsessão implícita, que marca a carne, a paixão rejeita a razão. Não dorme, não come e não escova os dentes. Renova-se como a cobra troca de pele. Todo o homem que um dia viveu uma paixão e mesmo ela tenha sido abrandada pelo amor do seio de outra mulher, não irá esquecer jamais. A paixão não tem partes destacáveis, é completo e na carne permanece. A paixão é o que movimenta Ares para a guerra, que conduziu o Cristo para seu calvário. É o que cria o novo. Enfim, o amor está para a água assim como a paixão para a gasolina.
Autor Desconhecido

sábado, 24 de novembro de 2007




"Odeio quem me rouba a solidão sem, em troca, me oferecer, verdadeiramente companhia."





Nietzsche


É natural que quem quer "elevar-se" sempre mais, um dia, acabe por ter vertigens. O que são vertigens? Medo de cair? Mas então porque é que temos vertigens num miradouro protegido com um parapeito? As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir, nos protegemos com pavor. (...)
Poderia dizer que ter vertigens é embriagarmo-nos com a nossa própria fraqueza. Temos consciência da nossa fraqueza, mas, em vez de resistir-lhe, queremos abandonar-nos a ela. Embriagamo-nos com a nossa própria fraqueza, queremos ficar ainda mais fracos, cair por terra em plena rua à frente de toda a gente, ficar por terra, ainda mais abaixo do que a terra.



Milan Kundera in 'A Insustentável Leveza Do Ser'

sexta-feira, 23 de novembro de 2007






Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde.



Friedrich Nietzsche






quinta-feira, 22 de novembro de 2007



Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.

Senti ou não?
...

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.




Fernando Pessoa

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

domingo, 18 de novembro de 2007




Às vezes o homem repudia a mulher, ou a mulher muda de amante, por se ter desiludido. Consequências do comportamento leviano quer de um quer do outro. Porque só é possível amar através da mulher e não a mulher. Através do poema e não o poema. Através da paisagem entrevista do alto das montanhas. E a licenciosidade nasce da angústia de não se conseguir ser. Quando uma pessoa anda com insónias, volta-se e torna-se a voltar na cama, à procura do fresco ombro do leito. Mas basta tocá-lo, para ele se tornar tépido e recusar-se. E ele procura noutro sítio uma fonte durável de frescura. Mas não consegue dar com ela, porque mal lhe toca a provisão esvai-se.
O mesmo se passa com aquele ou com aquela que se fica no vazio dos seres. Não passam de vazios os seres que não são janelas ou frestas para Deus. É por isso que, no amor vulgar, só amas o que te foge. De outra maneira, vês-te saciado e descoroçoado com a tua satisfação.






Antoine de Saint-Exupéry, in “Cidadela”

A moralidade é o instinto do rebanho no indivíduo.




Nietzsche

sexta-feira, 16 de novembro de 2007


Quando chegares, não batas à porta. Ela está aberta e sem trinco.
Tão pouco perguntes se está alguém em casa.
Mesmo que pareça vazia(...)
Quando sentires vontade de saír, não batas com a porta.
Para quem escancara a própria porta, qualquer barulho é ensurdecedor...




Claudia Letti

(...)
Se alguns actos humanos podem ser considerados sem causa, são os pequeninos actos gratuitos e simples do homem normal: assobiar quando passeia, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as mãos. É esse homem feliz que faz coisas inúteis; o doente não é bastante forte para esses desperdícios. São exactamente esses actos descuidados e sem motivos que o doido não pode compreender; porque o doido (como o determinista) vê geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas actividades gratuitas ele é capaz de descobrir uma significação conspiratória. Pensará que o vergastar a grama é um ataque à propriedade privada; e que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum cúmplice escondido. Se o doido pudesse ficar um só instante descuidado ficaria curado. Aqueles que tiveram a infelicidade de privar com uma pessoa mergulhada ou mesmo na orla da desordem mental sabem que a mais sinistra qualidade desse estado é uma horrível clareza nos detalhes; é a conexão de uma coisa com outra numa espécie de mapa mais elaborado do que um labirinto. Se um de nós quiser discutir com um doido, é extremamente provável que ele leve a melhor, porque em muitos pontos seu espírito é mais rápido do que o nosso, não estando preso a certas coisas que atrasam um bom julgamento. Ele não se embaraça com o senso de humor, com a caridade, ou com algumas certezas de experiência. Tornou-se mais lógico pela perda de certas fraquezas saudáveis. Realmente, a definição vulgar da insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido é o homem que perdeu tudo, excepto a razão.
(...)




Gilbert Keith Chesterton

terça-feira, 13 de novembro de 2007




Caruso (1981) afirma que estudar a separação amorosa significa estudar a presença da morte na vida. Referindo-se ao ditado francês: 'partir c’est mourrir un peu' (partir é morrer um pouco), Caruso (1981, p.12) afirma que, na separação, há uma sentença de morte recíproca: “o outro morre em vida dentro de mim e eu também morro na consciência do outro”.
Segundo Freud (1974), o luto profundo, como reacção à perda de alguém que se ama, pode ser resumido como um estado de espírito penoso, na cessação de interesse pelo mundo externo, na perda da capacidade de adoptar um novo objecto de amor (o que significa substituí-lo) e no afastamento de toda e qualquer actividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele. O indivíduo em luto geralmente experimenta um desejo de reparar a perda e destruir o objecto que foi interiorizado como “bom” (Baker, 2001). É impossível prever quanto tempo durará o “período de luto”, assim como é difícil determinar o momento em que ele começa efectivamente (Giusti, 1987). Segundo Féres-Carneiro (1998), o tempo de elaboração do luto pela separação pode ser maior do que aquele do luto por morte.
Na medida em que a separação constitui a tão desejada solução para um problema que não poderia ser resolvido de outra forma, deveria, então, ser vivida como uma sensação de alívio, mas a mobilização emocional pós-separação, tal como percebida por Maldonado (1995), é intensa, pois a pessoa está diante do medo, da incerteza, da insegurança, que caracterizam a mudança de aspectos importantes de si mesmo. São comuns as atitudes irracionais, ilógicas e impulsivas.
A separação não é só o fim de uma união material, mas também a quebra de vínculos, de laços emotivos, sexuais e afectivos, criados, segundo Giusti (1987), tanto pelo amor como pelo ódio, pelas brigas e pelas reconciliações. Dependendo de quem é o responsável pelo término da relação, diferentes tipos de dor são sentidas. Embora seja considerado ruim para ambos, costuma sofrer mais aquele que é percebido como deixado. Não porque a separação não doa na pessoa que terminou, mas, segundo Colasanti (1986), porque este, para aliviar sua dor, tem o estímulo do impulso que o levou a agir e o sentido de renovação. Para quem quer separar-se, o que predomina, inicialmente, é o alívio, às vezes a euforia, por se ver livre do peso e da tensão da situação infeliz. A sensação de alívio amortece o impacto. Há a novidade, as mudanças, a passagem de um passado conhecido para um futuro sem previsões. Depois, costumam vir culpa e tristeza. Surgem aí, com toda força, os bons momentos, sonhos desfeitos, a tristeza pelo que poderia ter sido, mas não foi, pelo que não foi possível manter.
Os sentimentos de ódio e frieza, nessas horas, surgem para suavizar ou neutralizar os sentimentos de pesar e de culpa, que talvez doam muito mais. Pensar com raiva só nas coisas ruins anestesia a dor de lamentar o que não deu certo. Em meio ao ódio, ao ressentimento e à dor, vem a tendência a denegrir, difamar e rebaixar o ex-parceiro para convencer-se de que não perdeu grande coisa. Se, aos olhos da pessoa, o outro fica desprezível, será mais fácil acabar. Os defeitos se ressaltam, as qualidades passam para segundo plano no esforço de sentir menos as perdas ou de não se arrepender da decisão de separar-se (Maldonado, 1995). Quanto mais longa e íntima for a união, provavelmente mais desolador será o momento da separação, mesmo se a intimidade era produto de sofrimentos, incompreensões e ofensas (Giusti, 1987).
Diante da percepção de que a decisão do outro é irreversível, costuma vir a depressão, quase sempre acompanhada pelos sentimentos de auto depreciação, pena de si mesmo, baixa auto-estima. As etapas se mesclam, principalmente a depressão com auto desvalorização e a raiva com o ataque ao parceiro, a vingança e a hostilidade (Maldonado, 1995; Mearns, 1991). A depreciação da pessoa amada, segundo Klein e Rivière (1975), pode ser um mecanismo útil de vasta aplicação que nos permite suportar decepções sem nos tornarmos selvagens. Um certo grau de depreciação de qualquer pessoa ou coisa querida a que se renunciou é provavelmente inevitável, mesmo se configurada em pouco mais que a descoberta do fato de que a pessoa, ou coisa desejada, fora exageradamente idealizada.
É difícil deixar de pensar a respeito da vida e dos actuais sentimentos do nosso antigo companheiro: se ele sente nossa falta, se precisa de nós ou se está reconstruindo sua própria vida. As possíveis novas relações do parceiro podem dar início ao ciúme, inclusive em quem nunca o sentiu. “É possível que um indivíduo deseje estar - ou mesmo, no nível da fantasia, sinta-se - comprometido com uma pessoa amada sem que a recíproca seja verdadeira, e, nesse caso, a interferência de um rival pode gerar o ciúme, apresentando as mesmas características de uma situação triangular real” (Ramos, 2000, p. 32).
O ciúme e o sentimento de posse emergem, especialmente, quando se perdem todos os direitos: se antes tínhamos “o direito de amor exclusivo” sobre uma pessoa, quando ele cessa de existir, surge uma profunda sensação de frustração e de impotência. Às vezes ocorre que, depois da separação, ao mesmo tempo em que se aguça o desejo de possuir e de controlar o outro, acaba-se perdendo toda a motivação para viver e experimenta-se a penosa sensação de estar à deriva (Giusti, 1987). Para Wilson (2000), o término de um romance, mesmo o primeiro, pode disparar uma depressão vitalícia, principalmente nas pessoas que têm uma vulnerabilidade predeterminada a vicissitudes românticas e a deprimir-se durante tais períodos difíceis.
Há pessoas que se protegem do impacto emocional da separação fazendo uma defesa de “anestesia afectiva total” (Maldonado, 1995, p.122): “Eu estou tão estranha, não consigo sentir nem alegria nem tristeza”. Há quem se isole, preferindo ficar sozinho ou em contacto com pouca gente para ter a sensação de paz e de alívio. Vilhena (1991), ao referir-se à separação, enfatiza a questão da “capacidade de ficar só” dos sujeitos e distingue diferentes formas de solidão.
A solidão pode representar uma possibilidade de ficar consigo mesmo ou uma incapacidade de tolerar a indiferença do outro, manifestando-se tanto no isolamento voluntário como na busca compulsiva de companhia. Pouco a pouco, porém, as emoções que nos mantêm impossibilitados de reagir vão sendo reelaboradas e vividas de maneira mais direta e menos dilacerante. “Somos indivíduos reprimidos pelo proibido e pelo impossível, que procuram adaptar-se a seus relacionamentos extremamente imperfeitos. Vivemos de perder e abandonar, e de desistir. E, mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor sofrimento, todos nós compreendemos que a perda é, sem dúvida, uma condição permanente da vida humana” (Viorst, 1988, p. 243).



'Sentimentos predominantes após o término de um relacionamento amorosos' de Mariana Valença Marconde, Michele Trierweiler e Roberto Moraes Cruz


À beira de um precipício só há uma maneira de andar para a frente: é dar um passo atrás.





(M. de Montaigne)

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Interrogação



Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do "Cântico dos cânticos".
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.






Camilo Pessanha


Só não se basta a si próprio o que não tem com que se bastar. Assim se explica que ele busque nos outros o que lhe falta em si mesmo. Isto deve estar certo. E todavia pode não estar. O que falta no que encontramos pode não ter que ver com o que lá está, mas com o que lá se procura. O erro está pois no que se não deve procurar. Posso procurar um sistema de ideias onde só encontro uma dose de senso comum. Posso encontrar uma côdea de pão onde procurei um bife com ovo a cavalo. Assim há que ir procurar no fornecimento alheio o que nos falta no próprio - em contentamento, em pacificação, em reconhecimento da glória de que duvido ou não tenho. E no entanto, a ambição puramente individual é à nossa medida que deveria talhar-se. Excepto talvez para o que sustenta essa ambição, ou seja para o que nos sustenta. Mas nesse caso a ambição chama-se justiça e já não é individual. E nesse caso fazem-se revoluções.




Vergílio Ferreira, in ‘Conta-Corrente IV’

sábado, 10 de novembro de 2007



A vida já é bastante penosa para que ainda a agravemos com proibições e obstáculos aos seus deleites; tão arisca se mostra a felicidade que todas as portas por onde ela queira entrar devem permanecer escancaradas. A carne enfraquece muito precocemente - e os olhos olham com melancolia para os prazeres de outrora. Muito rapidamente todas as alegrias perdem a vivacidade - e admiramo-nos de como pudessem ter-nos interessado tanto. O próprio amor torna-se grotesco logo que atinge os seus fins. Guardemos o ascetismo para a estação própria - a velhice.É este o grande drama do prazer; todas as coisas agradáveis acabam por amargar; todas as flores murcham quando as colhemos, e o amor morre tanto mais depressa quanto é mais retribuído. Por isso o passado parece-nos sempre melhor que o presente; esquecemos os espinhos das rosas colhidas; saltamos por cima dos insultos e injúrias e demoramo-nos sobre as vitórias. O presente parece muito mesquinho diante de um passado do qual só retemos na memória o bom, e diante de um futuro que ainda é sonho. O que alcançamos nunca nos contenta; «olhamos para diante e para trás em procura do que não está ali»; não somos bastante sábios para amar o presente do mesmo modo que o amaremos quando se tornar passado. Quando mergulhamos num prazer, o nosso olhar vai para longe - a felicidade ainda não está alcançada apesar de termos o deleite nos nossos braços. Que mau demónio nos afeiçoou assim?





Will Durant, in 'Filosofia da Vida'

sexta-feira, 9 de novembro de 2007


A ânsia de matar tempo, de liquidar o espaço de dias entre um acontecimento e o que lhe sucede, transmite, tanto em casos de amor como em outros, fins importantes, um estado de alma que se preocupa exclusivamente em atingir esse alvo previamente estabelecido. Não se pensa em mais nada. Semelhante à situação criada quando se sabe de antemão que se vai encontrar determinada pessoa que nos interessa muito. Fica-se incapaz de articular palavra, de estreitar vínculo com quem quer que seja que se nos atravesse no caminho. Está-se a viver em outrem, num estado fora da relação humana do dia a dia. Nem sequer ouvimos os sons, arrepiamos a pele ao tomar conhecimento consciente de notícias que já sabíamos de antemão pertencerem ao domínio público. Esta é também a ânsia do suicida que nada mais faz entre a decisão de cometer o homicídio e a prática do acto extremo.



Ruben Alves, in “O Mundo À Minha Procura I”


Persistir na raiva é como apanhar um pedaço de carvão quente com a intenção de o atirar a alguém. É sempre quem levanta a pedra que se queima.





Budha





Quando fazemos amor com uma nova mulher, vimo-nos por causa da paixão. Quando fazemos amor com uma esposa, vimo-nos por causa da fricção. A paixão é luxúria idolatrada pelo frémito. O frémito no casamento é reduzido a cinzas, e o que resta é uma luxúria insignificante, uma contribuição inevitável à fisiologia.Só depois do meu casamento é que eu percebi até que ponto a paixão é espiritual. A alma perde o frémito, que só se obtém através da novidade. Lutar pela novidade é o mesmo que lutar pelo conhecimento, acerca do qual Deus nos advertiu. Se o conhecimento é pecaminoso, então tudo o que é novo é pecaminoso. É por isso que a força dos laços familiares se baseia na tradição e no costume antigo. A intrusão da novidade, do novo conhecimento no casamento, só o destrói. Cada adultério é uma renovação do pecado do conhecimento. No casamento, a espiritualidade do frémito pela nossa mulher não desaparece, transforma-se em filhos, transforma-se na alma da criança. Talvez seja por isso que a Igreja Católica, embora ciente de que o frémito desaparece no casamento, considera a cópula pecaminosa se não tiver o objectivo de engravidar. Esta proibição prolonga a vida da paixão, porque o período de continência é tão longo que, quando os esposos caem avidamente nos braços um do outro para conceber um novo bebé, o tédio é esquecido e o frémito revive. Dali a um mês ou dois, o frémito desaparece outra vez e é substituído pelo hábito, mas nesta altura a mulher está outra vez grávida e a cópula tem de parar, de acordo com a proibição.





Alexander Puschkine, in ‘Diário Secreto’




Tu lembras daqueles grandes espelhos côncavos ou convexos que, em certos estabelecimentos, os proprietários colocavam à entrada para atrair os fregueses, achatando-os, alongando-os, deformando-os nas mais estranhas configurações?Nós, as crianças de então, achávamos uma bruta graça, por saber que era tudo ilusão, embora talvez nem conhecêssemos o sentido da palavra “ilusão”.Não, nós bem sabíamos que não éramos aquilo!Depois, ao crescer, descobrimos que, para os outros, não éramos precisamente isto que somos, mas aquilo que os outros vêem.Cuidado, incauto leitor! Há casos, na vida, em que alguns acabam adaptando-se a essas imagens enganosas, despersonalizando-se num segundo 'eu'.Que pode uma alma, ainda por cima invisível, contra o testemunho de milhares de espelhos?Eis aqui um grave assunto para um conto, uma novela, um romance, ou uma tese de mestrado em Psicologia.









Mário Quintana in 'Na Volta Da Esquina'

domingo, 4 de novembro de 2007




Porque o fogo que me faz arder é o mesmo que me ilumina...




Étienne de La Boétie





(...) o sexo não pode ser praticado a qualquer hora. Há um relógio escondido em cada um, e para fazer amor os ponteiros das duas pessoas têm de marcar a mesma hora ao mesmo tempo. Isso não acontece todos os dias. Quem ama não depende do acto sexual para se sentir bem. Duas pessoas que estão juntas, e que se querem bem, precisam de acertar os seus ponteiros, com paciência e perseverança, com jogos e representações "teatrais", até entenderem que fazer amor é mais do que um encontro; é um "abraço" das partes genitais.
Tudo tem importância. Uma pessoa que vive intensamente a sua vida tem prazer e não sente falta de sexo. Quando faz sexo, é por abundância, porque o copo de vinho está tão cheio que transborda naturalmente, porque é absolutamente inevitável, porque ela aceita o apelo da vida, porque ela nesse momento, apenas nesse momento, ela consegue perder o controlo.




Paulo Coelho,in 'Onze Minutos'


Talvez o elogio que realmente tenha valor seja o recebido depois de ser subestimado. Esse sim, vem como para coroar um esforço que não foi em vão. Não nos diz que já está bom assim, mas que valeu a pena. Deixo o meu conselho: Apreciem mais a subestimação.



Sérgio Zambiasi

sábado, 3 de novembro de 2007



Depois uma pessoa cresce e habitua-se a sofrer. A esperar. A sonhar um bolo gigante a partir de 3 migalhas. A acreditar no impossível. A desejar o impensável. A querer que aqueles que amamos nos tragam o mundo numa bandeja. A isso chama-se carregar pianos. Até ao dia em que uma pessoa se cansa, baixa os braços, olha para o piano, encolhe os braços e diz agora basta. Basta de espera de abnegação, de sonhos, de promessas, de palavras mágicas e inconsequentes. Basta de promessas de amor, de castelos de areia, de adiamentos e hesitações, de ausências e dúvidas. E depois, o mundo vai abaixo. As casas, os prédios, as pontes, tudo se desfaz num estrondo imenso e assustador, que faz quase tanto barulho como um coração que está a bater com a porta. E como é o nosso coração que está a bater a porta, ainda custa mais.
E sentimo-nos a desmanchar por dentro. Não é a partir, é só a desmanchar, como se nada tivesse forma ou fizesse sentido.
(...)
Carregar pianos. Escada acima, quatro andares sem elevador. As costas doem, os braços tremem, as curvas da escada são uma equação impossível de resolver, tudo é difícil, tudo é esforço, tudo é inglório. E o amor transforma-se numa luta, num sacrificio, somos martires da nossa loucura, flagelados pela nossa obstinação e teimosia. E o pior é que, quando chegamos ao fim da batalha e o piano está lá em cima, não era aquela sala, nem aqula casa, nem aqula pessoa.



Margarida Rebelo Pinto in 'Artista de Circo'

sexta-feira, 2 de novembro de 2007


"Pensa num rio, denso e majestoso, que corre por milhas e milhas entre robustos diques, e tu sabes onde está o rio, onde o dique, onde a terra firme. A certa altura, o rio, cansaço, porque correu por demasiado tempo e demasiado espaço, porque se aproxima do mar,que anula em si todos os rios, já não sabe o que é. Torna-se o seu próprio delta. Permanece talvez um braço maior, mas muitos outros se ramificam, em todas as direcções, e alguns confluem uns nos outros, e já não sabes o que está na origem do que é, e por vezes não sabes o que ainda é rio e o que já é mar..."





Umberto Eco in 'O Nome de Rosa'