domingo, 27 de dezembro de 2009

sábado, 26 de dezembro de 2009


Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite. É verdade que te podia dizer: "Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos apenas dentro de nós próprios?" Mas ensinaste-me a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou, até sermos um apenas no amor que nos une, contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor; ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo esse que mal corria quando por ele passamos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor, de chegar antes de ti para te ver chegar, com a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu: a primavera luminosa da minha expectativa, a mais certa certeza de que gosto de ti, como gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.









Nuno Júdice, in - Pedro, Lembrando Inês

Canção Grata.




Por tudo o que me deste

inquietação cuidado

um pouco de ternura

é certo mas tão pouca

Noites de insónia

Pelas ruas como louca

Obrigada, obrigada

Por aquela tão doce

e tão breve ilusão

Embora nunca mais

Depois de que a vi desfeita

Eu volte a ser quem fui

Sem ironia aceita

A minha gratidão

Que bem que me faz agora

o mal que me fizeste

Mais forte e mais serena

E livre e descuidada

Sem ironia amor obrigada

Obrigada por tudo o que me deste

Por aquela tão doce

e tão breve ilusão

Embora nunca mais

Depois de que a vi desfeita

Eu volte a ser quem fui

Sem ironia aceita

A minha gratidão!







Florbela Espanca

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009


- E aquilo o que é?

- Um sonho. Um sonho mecânico. Deixei-o aí para me lembrar que também aos sonhos os devora a ferrugem. A ferrugem nunca dorme.






in " As Mulheres do Meu Pai", José Eduardo Agualusa

domingo, 13 de dezembro de 2009


(...) Falámos demasiado para que eu esqueça do que falámos, vivemos demasiadas vidas para que eu as possa separar. Para que eu me possa separar de ti. A memória tende a desfibrar-se, víscera velha, nesta condição a que chamei apenas imaterial para não te assustar. Vejo tudo, continuamente. O espectáculo da vida interfere com a minha deambulação ao passado. (...) Qualquer dia olho para ti e já não sei quem fomos - encontros, desencontros, iras, ressentimentos, tudo se transforma numa massa fosca, pesada, que tento abandonar a pouco e pouco. (...) Começo a ver-te fora do tempo, esforço-me muito para recapitular o que me traz aqui, (...) O estado em que me encontro é angustiante: como se vivesse em sonolência diante de um filme que já não posso recriar, vendo tudo: o passado e o futuro - que afinal são um só - e aprendendo demasiado tarde o que não fui capaz de ver. (...)







in "Fazes-me Falta", Inês Pedrosa

terça-feira, 14 de julho de 2009



Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?








Cecília Meireles

segunda-feira, 8 de junho de 2009



CHATEIA - ME, esta minha incapacidade para te resistir, esta minha passividade perante a tua vontade que me deixa, fragilmente, à mercê dos teus desejos e apetites.
IRRITAM -ME, as horas que passo à tua espera, nos dia em que, simplesmente, decides excluir-me da tua vida, em pensamento e em facto, enquanto eu, ao invés, gasto a minha, a fantasiar como seria se estivéssemos, ou quando estivemos, juntos.
ASSUSTA-ME, esse teu alheamento, esse teu esquecimento, essa tua disciplina de, tão facilmente, me banires do teu pensamento, do teu dia-a-dia.
MAGOA -ME, a injustiça de me teres arrastado (à força da tua persistência e capricho) para o teu mundo, arrancando-me do meu, tirando-me do meu (parco) equilíbrio, prometendo-me mundos e fundos, acenando-me com a felicidade, para depois te fartares, qual criança mimada que enjoa as guloseimas que, voluntariosamente, tanto desejou.
DÓI -ME, a tua indiferença face à minha dor, quando a medo e em desespero ta confesso, e a ignoras ou subestimas, ao contrário de mim que te velo a tua, que a expio e a sofro, como se de minha se tratasse.
EXASPERA - ME, esta tua disponibilidade e responsabilidade para com o trabalho e os outros, aqueles que, ao pé de mim, nada te querem, cujo o amor que te têm, comparado com o meu, é ínfimo, cuja dedicação que te concedem, à beira da minha, é nula.
ENOJA - ME, esta minha disponibilidade, esta minha fraqueza, esta minha quase doença, que ao estalar dos teus dedos me faz, qual discípulo hipnotizado, seguir-te para onde quer que (me) queiras ou vás.
AGONIA - ME, deprime-me, mata-me, enfim, esta minha dedicação, este meu amor por ti.
E CHOCA - ME, mais do que tudo, perceber ser isso, seres tu, Meu amor - sejas, lá, tu quem fores - o que me move, o que verdadeiramente (me) interessa, o que, afinal, dá sentido à minha vida.









Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.
Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.
Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.








Fernando Pessoa

domingo, 7 de junho de 2009


Há coisas que a gente não nota porque são muito pequenas para serem vistas. Mas há outras que a gente não vê porque são imensas.








Robert Pirsig, in "Zen e a arte da manutenção de motocicletas: uma investigação sobre valores."

Lips Of An Angel...






...

sexta-feira, 5 de junho de 2009



Queria dizer-te da importância de certos gestos nossos para a conservação da natureza, como a obediência dos teus pêlos aos avanços da minha língua quando esta te varre a pele, alisando-a contra o sentido do vento. Queria dizer-te que são fundamentais, para o equilíbrio do universo, para o alinhamento dos chakras e para o perfeito feng shui das divisões de todas as casas, os teus mergulhos por entre as minhas pernas e o tempo em apneia que por lá demoras, o suficiente para que a paz no mundo e a harmonia entre os povos não sejam meras utopias. Queria dizer-te que é quando me sulcas por dentro com movimentos desencontrados e espavoridos como o bater das asas de uma borboleta, que o caos se organiza e que factos importantes acontecem no lado oposto do mundo; que do entrelaço das minhas pernas nas tuas depende a preservação das espécies e que a sincronia das nossas respirações anelantes diminui sensivelmente o buraco do ozono e todos os malefícios conexos. Queria dizer-te que é absolutamente indispensável para o fim da fome e das guerras, que me dobres e me vires, que me avesses e me endireites e me faças gritar o teu nome; e que quanto mais vingar a distância que existe entre nós, maior o degelo nos glaciares e o perigo de extinção dos ursos, por ali à deriva sem poiso. Queria dizer-te da extrema necessidade de os dois sermos às vezes um só, pois da fusão nuclear que resulta da fricção do Amor dependem avanços energéticos em prol da sustentabilidade do planeta. E que o facto de me exigires e de me quereres de certas maneiras, conduz à reflorestação de zonas áridas e à protecção de zonas húmidas e do respectivo habitat, o que faz com que o mundo respire melhor, devidamente oxigenado.










quarta-feira, 27 de maio de 2009


(...)
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...






Fernando Pessoa

terça-feira, 26 de maio de 2009




Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
És a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.






David Mourão-Ferreira



No fundo só és livre se segurares na tua mais pequena partícula e a colocares no bolso, com facilidade. Como ninguém o consegue somos sacos; e não quem carrega os sacos.
Se o amor fosse forte, à frente da bala faria da bala uma inútil máquina em miniatura. Mas é a bala que faz do amor um inútil sentimento em miniatura. Se duvidas, experimenta.







Gonçalo M. Tavares, in "Biblioteca"

sábado, 23 de maio de 2009



Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco







Mário Cesariny

quarta-feira, 20 de maio de 2009

sábado, 16 de maio de 2009



O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes,
eu fecho mais a porta.

(...)

Respira-nos, repara, a ilusão
de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despes,
vai perdendo o nosso número de telefone.







José Miguel Silva, in "Ulisses já não mora aqui"

quarta-feira, 13 de maio de 2009


Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia, existe, entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus.







in "Fazes-me Falta", Inês Pedrosa

terça-feira, 12 de maio de 2009



A maldade é uma categoria do raciocínio. Não é uma invenção sobrenatural, nem cresce a partir de substâncias inscritas nos vegetais comestíveis. A maldade é uma categoria do instinto, sim, mas também do raciocínio, da inteligência. Como se fosse uma etapa do percurso que o cérebro matemático faz quando pretende resolver problemas numéricos. Dedução, indução e maldade.





Gonçalo M. Tavares, in "A Máquina de Joseph Walser"


Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais
Te perdôo
Te perdôo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim
Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)
Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair
Mil perdões








Chico Buarque/1983
Para o filme "Perdoa-me por me traíres", de Braz Chediak

domingo, 10 de maio de 2009



Como sabes eu vivo de relâmpagos; contigo partilhei uma trovoada um pouco mais longa do que o habitual. Foi apenas isso. De qualquer modo, a morte espreita sobre todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu- íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram. Tu. (...) Feliz por estar ao teu lado outra vez. Ao lado dessa que já estava morta um bom par de anos antes de tu morreres. Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que uma sucessão de faltas que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora de jogo, diminui o interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transtornem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim.









in "Fazes-me Falta", Inês Pedrosa

quinta-feira, 7 de maio de 2009


Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento







Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto (1962)

Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu.
Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.
Fernando Pessoa

- Tu afirmavas que os seres que se gabam de explicar e de compreender o mundo são sempre incapazes de o modificar?- Sim - respondeu o mestre. - O Verdadeiro e o Falso são as escapatórias daqueles que se recusam sempre a tomar uma decisão. Porque a verdade é uma coisa sem fim.





Robert Musil, in "O Homem sem Qualidades"

segunda-feira, 4 de maio de 2009

sexta-feira, 1 de maio de 2009


(...)
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.






Alberto Caeiro


Sabe, ouvi falar de um homem cujo amigo tinha sido preso e que todas as noites se deitava no chão do seu quarto para não gozar de um conforto de que havia sido privado aquele que ele amava. Quem, meu caro senhor, quem se deitará no chão por nós? Se eu próprio seria capaz? Escute, gostaria de ser, sê-lo-ei. Sim, seremos todos capazes, um dia, e será a salvação. Mas não é fácil, porque a amizade é distraída, ou, pelo menos, impotente. O que ela quer não pode. Acaso, no fim de contas, não o quererá bastante? Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós durante a vida inteira. Mas sabe porque somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, arrumar a homenagem entre o copo de água e uma gentil amante, nas horas vagas, em suma. Se algo nos impusessem, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não, é o morto de fresco que nós amamos nos nossos amigos, o morto doloroso, a nossa emoção, enfim, nós próprios.







in "A Queda", Albert Camus

segunda-feira, 27 de abril de 2009



Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio
de um cais frio. Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.






Amalia Bautista em Tres deseos; Renacimiento, Sevilla, 2006

quinta-feira, 23 de abril de 2009


Estranho como o sorriso de um bisturi.
Íntimo como um olho sem pálpebra aberto na nossa mão.
Deslumbrante como o rumor da passagem de um unicórnio.
Fiel como a súbita seda negra do medo.
Temível como o brilho da espada de fogo de um arcanjo.
Submisso como as ondas que rebentam contra a praia de um peito.
Devastador como a clareza de um olhar num espelho quebrado.
Inevitável como a ferida feita pela chuva num coração de pedra,
o amor chega um dia à nossa vida e nós não estamos.








Abelardo Linares (Trad. Joaquim Manuel Magalhães)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Tu



Tu que, escondido, me espias; que me lês incógnito; que, omisso, julgas que me observas... não penses que me conheces.
Tu que, com a tua passividade, te pensas esperto; que, aninhado no teu silêncio, acreditas que me podes ter… não sabes é nada.
Em cada palavra minha, existe uma ratoeira; em cada frase, uma armadilha; em cada pensamento, uma farsa; em cada rosto, muitas caras, onde caiem os inofensivos e os predadores, onde se enganam e se perdem os que se pensam sábios. Como tu. Meu Amor.





(in Http://easfadastambemseenganamnocaminho.blogspot.com )

domingo, 19 de abril de 2009

sábado, 18 de abril de 2009



Há momentos em que parto não sei para onde. Navegação espiritual. Ou dispersão na terra abstracta, a única que se vê quando não se vê. São as grandes caçadas dentro de mim mesmo, a busca da magia perdida, uma palavra cintilante, uma perdiz imaginária, um sopro, um ritmo, uma espécie de bafo. Como o teu. Às vezes sinto-o, outras não. Mas sei que estás aí, algures, enroscado na minha própria solidão.







Manuel Alegre in "Cão Como Nós"

quinta-feira, 16 de abril de 2009



(...)
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
'Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
(...)





Fernando Pessoa

domingo, 12 de abril de 2009



Se antes de cada acto nosso, nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar.




José Saramago, in "Ensaio sobre a Cegueira"

sábado, 11 de abril de 2009

The Kill.






...

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu
A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
Sozinha já não vou. Apenas fujo às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
— as minhas coordenadas.





Fernanda Botelho, de Coordenadas Líricas

sexta-feira, 10 de abril de 2009


Uma coisa é querer a verdade do nosso lado, outra é querer sinceramente estar no lado da verdade.








Richard Whately

terça-feira, 7 de abril de 2009



"Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede; procure ser árvore."






Manuel de Barros

Devagar,
Hora a hora,
Dia a dia,
Como se o tempo fosse um banho de acidez,
Vou vendo com mais funda nitidez
O negativo da fotografia.
E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto,
Em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade.





Miguel Torga

domingo, 5 de abril de 2009

quinta-feira, 2 de abril de 2009



O coração não se explica. É por isso que ele é o coração. E quando ele chega a explicar-se, é porque já é tarde demais.





Bertrand Vergely, O Sofrimento, p. 151 (EDUSC)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Run




...


Solidão: trata-se da mesma palavra para duas situações opostas, a solidão suportada, a solidão desejada.
A primeira é dramática; tenho necessidade dos outros e não há ninguém. Sou como uma chama que se extingue por sufocação, por falta de oxigénio.
A segunda é, em certos momentos, necessária para reencontrar a coerência de todos os materiais que se acumularam, reestabelecer conexões e se preparar para novos encontros.





Albert Jacquard, in"Filosofia para não-filósofos" (Campus, pg. 5)

domingo, 29 de março de 2009




Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.








Fernando Pessoa

sexta-feira, 27 de março de 2009

terça-feira, 24 de março de 2009

Súplica




Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.







Miguel Torga

segunda-feira, 23 de março de 2009




Que importa explicar-se o amor, a alegria, uma... dor de dentes? No amor, na alegria, sou eu amando, alegrando-me; e a dor de dentes só existe na medida em que eu a sou. Que importa demonstrarem-nos a exactidão de uma doutrina? Uma doutrina só me é exacta na medida em que a sinto, a vejo tal. E acaso se necessita sempre para isso de um argumento novo? Acaso os mesmos argumentos, exactamente os mesmos, sem que um novo esclarecimento os ilumine, não podem deixar-nos indiferentes ou queimar-nos de evidência? Que significa a explicação do globo ocular e de toda a estrutura fisiológica da vista para a compreensão do acto de ver?







Vergílio Ferreira,Prefácio/Ensaio para "O Existencialismo é um Humanismo", de Jean-Paul Sartre

Consigo resistir a tudo menos à tentação, disse Óscar Wilde, o príncipe dos aforismos. A tentação de prevaricar – bela palavra do léxico nacional que felizmente escapou ilesa no novo acordo ortográfico – corre no sangue de qualquer ser humano e pode ser englobada em, pelo menos, dois pecados capitais: o da gula e o da luxúria, afinal tão parecidos.
A problemática de prevaricar reveste-se de diversos aspectos espinhosos que se complementam entre si. Em primeiro lugar, o acto de ‘pular a cerca’ implica mentira, omissão e pode ser considerado com toda a legitimidade uma traição. Em segundo lugar – e é aqui que tudo se complica –, uma vez praticado, o acto despe-se de pudor e a repetição instala-se. É como uma travessa de amêijoas: quando chega à mesa, nunca conseguimos comer só uma. São tão saborosas, ali mergulhadas no molho, indefesas e abertas, à espera de serem devoradas… É irresistível molhar o pão uma, e outra e ainda outra vez, iludindo-nos sempre com a ideia de que é a última até não sobrar uma gota de molho. E depois?
E depois instala-se o caos. A dúvida. Os pesadelos. A confusão mental. O medo. O arrependimento. O remorso. A vontade de redenção. O desejo enfraquecido de não voltar a enfiar o pé na argola, de nunca mais meter a pata na poça nem o dedo na ferida, até porque a ferida demora sempre tempo a fechar, mesmo que não doa. Quem vive na corda bamba sabe que viver assim não é fácil nem saudável. Pode ser um grande desafio, qual jogo de computadores em que o objectivo é chegar sempre ao próximo nível, mas em bom rigor o que acontece é que o nível vai descendo até ao prevaricador se sentir um traste, um lixo, uma porcaria.
Não existe nesta análise um pingo de moralismo, apenas uma visão pura e dura da realidade. Ainda que de peito cheio de orgulho ufano, não conheço nenhum bandido profissional daqueles com mulher em casa e esquemas por fora, ou solteirão inveterado sem capacidade de se fixar, que se sinta equilibrado ou viva feliz. A seguir a fases de grande euforia conquistadora, aquele que comete o erro de Bulhão Pato entra facilmente em estados de melancolia depressiva. Pior do que enganarmos os outros é enganarmo-nos a nós próprios – e não há nada que faça uma pessoa sentir--se pior do que andar sempre a fingir ser aquilo que não é.
Apesar de o Pinóquio matar o Grilo Falante à martelada para não ter de lhe prestar contas, a voz da consciência acaba sempre por falar mais alto e, depois, é impossível silenciá-la.Uma traição não é apenas uma troca de fluidos arrebatados com uma terceira pessoa; é uma expressão inequívoca de desrespeito para quem está ao nosso lado. Resistir à tentação é um processo longo e complexo que se inicia muito antes de a travessa chegar à mesa. Há que desenvolver uma estratégia completa e cortar o mal pela raiz. Acreditar na máxima ‘longe da vista, longe do coração’ – a qual nem sempre resulta, mas vale a pena tentar – e não telefonar, não enviar mensagens, não marcar encontros, a todo o custo não ver a amêijoa. Por melhor que ela seja, é um prato que pode sair caro, com risco de envenenamento, para o qual ainda não foi inventado nenhum antídoto eficaz.







Margarida Rebelo Pinto

sábado, 21 de março de 2009



Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.





Alberto Caeiro

quinta-feira, 19 de março de 2009



"Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir, é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida".





Fernando Pessoa


Amo o pensador orgânico porque só para ele as verdades emanam mais de um suplício interior que de uma especulação gratuita. Ao homem que pensa pelo prazer de pensar contrapõe-se o homem que pensa sob o efeito de um desequilibrio vital. Amo o pensamento que guarda um gosto de carne e sangue, e a uma abstração vazia prefiro mil vezes uma reflexão surgida de uma exaltação dos sentidos ou de uma depressão nervosa. Os homens ainda não compreenderam que o tempo das preocupações superficiais é passado, e que um uivo de desespero é mais revelador que o mais subtil dos argumentos e que uma lágrima tem sempre origens mais profundas que um sorriso.





Emil Cioran, Nos cumes do desespero, Obras, pg. 31-32.

quarta-feira, 18 de março de 2009

My lovely mirror...




...



De desencontro em desencontro quem sabe um dia eu te encontro...


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos
E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos






David Mourão-Ferreira, Obra Poética, p. 269

sexta-feira, 13 de março de 2009

Virgin State of Mind

O Mister Right


Encontrar a pessoa certa dá um trabalhão. O Mister Right ou a Miss Perfection são mitos insondáveis, produtos híbridos e ambivalentes, frutos da nossa imaginação misturada com as nossas ambições, os nossos medos, o nosso passado, o património genético que herdámos e os padrões que se foram colando à nossa pele. E como se isso não bastasse, o ideal da Pessoa Certa vai sofrendo alterações ao longo da vida. O que nos parece perfeito ao 18 anos nunca é o que o que desejamos aos 28, muito menos aos 38.


Não acredito que a pessoa certa exista. Nem a metáfora das laranjas, por mais bela e poética que seja, me convence de que existe uma alma gémea. Acredito que existe a Relação Certa, aquela relação com uma pessoa que nos faz sentir felizes, protegidos e completos, quer para um lado, quer para o outro. Acredito em relações complementares entre pessoas de idades diferentes e vivências diferenciadas. Acredito no entendimento entre pessoas de países distintos entre idiomas variados desde que exista uma base cultural próxima. Acredito em relações em que mulheres muito belas escolhem homens apagados por verem neles mais do que o aspecto físico. Acredito em relações de homens mais velhos com mulheres mais novas e em relações de homens novos com mulheres mais velhas. Acredito que pode existir perfeição num entendimento homossexual. Não acredito em relações em que os homens tratam as mulheres como sua propriedade ou quando as mulheres usam os parceiros sem qualquer respeito por eles.


E o que fazer quando se encontra a Relação Certa? É aqui que entra o trabalho de manutenção: depois de encontrar o Mister Right, é preciso verificar com frequência se ele está mesmo alright ou se pós maléficos se vão infiltrando na engrenagem. Às vezes somos nós que nos fartamos da outra pessoa. Começamos a embirrar com a forma de andar, com o ruído que faz a sorver o café ou com o tique de piscar os olhos demasiadas vezes por minuto. Outras vezes é o nosso parceiro que se desinteressa de nós, ou da vida que tem connosco. A rotina é um pau de muitos bicos; pode trazer estabilidade ou parar as águas para sempre. Há quem não viva sem rotina, há quem sufoque com esta. E há quem tenha pela rotina sentimentos contraditórios: precisa dela, mas detesta-a.


Dá trabalho encontrar a Pessoa Certa porque ela não é um ideal imaginado mas uma realidade construída. A Pessoa Certa só vence se trouxer consigo a Relação Certa. E as relações constroem-se todos os dias com bom senso, generosidade, imaginação, entrega e amor. Não há receitas nem na literatura nem no divã do psiquiatra, truques de bruxaria, ou soluções na última página do suplemento. O entendimento é um processo alquímico, nem tudo do que este é feito depende da nossa vontade. Mas para lá de tudo isto reside uma verdade que bate qualquer argumento: a Pessoa Certa para nós só o pode ser se, ao olhar para nós, vir a Pessoa Certa para ela.




Margarida Rebelo Pinto,in "Onde reside o amor",pag87/88

quinta-feira, 12 de março de 2009





Sol,boa disposiçao,e esta musica no mp4 :)
;)

quarta-feira, 11 de março de 2009



Não existe um único pensamento importante que a estupidez não saiba imediatamente utilizar; pode mover-se em todas as direcções e assumir todas as aparências da verdade. A verdade, essa, só tem uma aparência, um único caminho: está sempre prejudicada à partida."







in "Da Estupidez", Robert Musil

Dialogo de vultos



- Onde estamos?
- Estamos mortos.
E sem prestar a mais leve atenção
entregamo-nos.
Como quem surge da bruma, sem alguma inquietude
descarregamos o fardo das intempéries nos tordos recantos.
Foi o amanhecer de Primavera manhã.
Alisamos o cansaço da pele
de chuvas e ventos.
Sentamo-nos lado a lado,
e foi viver os aromas da estadia.
Dêmo-nos ao coração singelo
Incendiamos melodias já esquecidas
da água e do fogo.
Encorajamo-nos a preservar,
a não sofrer amarga morte.
Diante dos nossos olhos
estenderam-se caminhos, que conduziam à vida
abraçamo-nos.
Um ao outro num abraço demorado
poderosa luz infundiu nos nossos lábios.
Com olhos d' água e fogo d'alma
caminhamos até ao horizonte
Pedimos uma última palavra:
- Com que nome poderemos recordar-nos?
Quase sem voz
acenamos um adeus.
E, desde então nossa vida tem sido apenas
esperar por nós, sabendo-nos ressuscitados.







Fernando Ribeiro

sexta-feira, 6 de março de 2009

I can't hate you anymore


...

And how could we quit something we never even tried,

Well you still can't tell me why.

We built it up,

To watch it fall.

Like we meant nothing at all.

...

quinta-feira, 5 de março de 2009




A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas í toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.







in "Livro do Desassossego", Bernardo Soares

quarta-feira, 4 de março de 2009





Não dormes comigo à noite quando eu me volto e torno a voltar na cama, buscando um sono que te apague de mim, que afaste as perguntas que então me devoram «Onde estará ele agora? Estará sozinho em casa, sofrendo por minha causa? Estará acompanhado, dando a outra mulher o que eu já não tenho dele? Como fará ele amor com outra mulher? Como o pode?» (…)Tentarás como eu substituir a paixão e o excesso pela ternura e pelo consentimento? Com essas a quem chamas amigas, farás amor como um amigo? (…) E quem dormirá ao teu lado de noite? (…) E que sabes tu do meu sono? Que imaginas tu das minhas noites? Saberás tu que as mais felizes são aquelas em que chego à cama e adormeço, sem sequer me lembrar de ti, nem querer, como na música de Simone “eu não me lembro, nem esqueço – adormeço”.

...


Não quero ver o teu olhar triste e magoado que me acusa, sem defesa, que me condena, sem entender. Tu não entendes, mas eu preciso da tua força para sobreviver. (…)
Preciso de voltar a ver esse teu olhar cansado ao fim do dia, os ombros ligeiramente curvados, as palavras vagarosas, os olhos pisados pela luz (…). Quero-te vivo e igual a ti, como sempre te vi e te amei, para sentir-te ao meu lado para sempre, por maior que seja a distância fisica que criámos, a indiferença que tu imaginas que tenho e nunca tive nem terei.
Sei que se me pudesses ouvir me chamarias egoísta e dirias que, como sempre, é só a minha vontade que conta. estou sempre a falar contigo, mas tu não me ouves. Eu, porém, oiço-te sem que tu fales e quando falas, adivinho o contrário do que me dizes. Vejo-te à deriva e perdido e não te posso ajudar, porque tenho de me ajudar a mim. Tu não entendes, eu sei. Vives um conflito entre a tua força vital - que eu não te roubei, nem poderia - e a tua vontade de te deixares afundar, de te fechares no escuro da tua casa (…).Tu e não eu, se encarregará de destruir tudo o que vivemos, de acordo com a lei do excesso que é a única que compreendes: tudo ou nada, verdade ou mentira, amor ou ódio.

...



Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu (…), como nunca foi de mais ninguém. Assim vou vivendo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer. (…)sei das horas sem sentido que deixamos para trás. E que interessa, afinal, saber se sou feliz, assim? Por que perguntas sempre isso(...)? Por que te satisfaz tão fraca desforra, como se a tua sobrevivência já só se pudesse alimentar da minha impossibilidade de ser feliz. E porque não és tu feliz, então? Tu que tens tudo para isso e que és livre, nada te prende e nada deves a ninguém senão a ti próprio? Por que permaneces amarrado a mim como o último marinheiro de um navio velho que nunca mais navegará e que, em lugar de embarcar noutro barco, noutro destino, permanece grudado na ponte de comando inútil, envelhecido com o seu barco, ressequido e amargo? Vive tu. Vive por nós. Não deixes que eu te destrua. Não me deixes mais esse peso. Naveguei até ao cais onde tenciono ficar e morrer, mas evitei o naufrágio em mar alto e não me deixarei afundar aqui, encostada à terra firme.






Remorsos, sim, é verdade, às vezes tenho remorsos. Vejo-me em sonhos como um pássaro negro, crepuscular, alimentando-se nas sombras, nos desperdícios, nos destroços, das vidas alheias. mas, afinal, o que se leva da vida, senão remorsos? Remorsos do que podia ter sido e não foi e do que se perdeu depois de ter sido. Remorsos do que devia ter sido dito e feito. Remorsos destes eternos desencontros, desta sensação de que nada existe no seu tempo certo, de chegar sempre tarde ou partir cedo demais. Por que será que a seguir à noite vem sempre a manhã e de manhã pesa sempre nos olhos e na alma o que se fez e desfez de noite - um corpo húmido deixado num lençol de seda e o ladrão furtivo desse corpo abandonando o quarto que não é seu, em direcção ao vazio de tudo o que lhe pertence, inutilmente?





Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo.
E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.




Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares









Para sobreviver à perda, alguns dependentes afectivos inventam uma aberração amorosa que não é uma coisa nem outra: “amigorado”, que é uma mistura com mais do primeiro e menos do segundo, ainda que isso possa variar. Não tardarão a aparecer variações sobre o mesmo tema. É possível que comecemos a ver “esposorados” (esposos que parecem namorados), “amantosas” (uma mistura de amante e esposa) e outras experiências afectivas que permitem manter a ilusão de um encanto que já não existe.
Convertermo-nos em amantes da pessoa amada, com a desculpa de não desejarmos afastar-nos completamente é a pior das decisões. Não só impedimos a consumação do luto, como perpetuamos o sofrimento por tempo indeterminado. E se a relação era muito má ou pouco conveniente, pior ainda, porque desperdiçámos uma boa oportunidade de terminar de uma vez por todas com essa tortura.






in "Amar ou Depender", Walter Riso