quarta-feira, 27 de maio de 2009


(...)
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...






Fernando Pessoa

terça-feira, 26 de maio de 2009




Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
És a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.






David Mourão-Ferreira



No fundo só és livre se segurares na tua mais pequena partícula e a colocares no bolso, com facilidade. Como ninguém o consegue somos sacos; e não quem carrega os sacos.
Se o amor fosse forte, à frente da bala faria da bala uma inútil máquina em miniatura. Mas é a bala que faz do amor um inútil sentimento em miniatura. Se duvidas, experimenta.







Gonçalo M. Tavares, in "Biblioteca"

sábado, 23 de maio de 2009



Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco







Mário Cesariny

quarta-feira, 20 de maio de 2009

sábado, 16 de maio de 2009



O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes,
eu fecho mais a porta.

(...)

Respira-nos, repara, a ilusão
de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despes,
vai perdendo o nosso número de telefone.







José Miguel Silva, in "Ulisses já não mora aqui"

quarta-feira, 13 de maio de 2009


Chamo-lhe amor para simplificar. Há palavras assim, que se dizem como calmantes. Palavras usadas em série para nos impedir de pensar. O que existia, existe, entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam sei que não voltarás a devolver-me os meus.







in "Fazes-me Falta", Inês Pedrosa

terça-feira, 12 de maio de 2009



A maldade é uma categoria do raciocínio. Não é uma invenção sobrenatural, nem cresce a partir de substâncias inscritas nos vegetais comestíveis. A maldade é uma categoria do instinto, sim, mas também do raciocínio, da inteligência. Como se fosse uma etapa do percurso que o cérebro matemático faz quando pretende resolver problemas numéricos. Dedução, indução e maldade.





Gonçalo M. Tavares, in "A Máquina de Joseph Walser"


Te perdôo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdôo
Por pedires perdão
Por me amares demais
Te perdôo
Te perdôo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdôo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim
Te perdôo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdôo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)
Te perdôo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdôo
Te perdôo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdôo
Por te trair
Mil perdões








Chico Buarque/1983
Para o filme "Perdoa-me por me traíres", de Braz Chediak

domingo, 10 de maio de 2009



Como sabes eu vivo de relâmpagos; contigo partilhei uma trovoada um pouco mais longa do que o habitual. Foi apenas isso. De qualquer modo, a morte espreita sobre todos os prazeres dessa cronologia a que nos agarramos para escapar ao tempo. O que somos para além do que vamos sendo? O meu além eras tu- íman da minha íntima, impessoal temporalidade. Redenção dos males que me amputaram. Tu. (...) Feliz por estar ao teu lado outra vez. Ao lado dessa que já estava morta um bom par de anos antes de tu morreres. Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que uma sucessão de faltas que nos animam. A tua morte alivia-me do medo de morrer. Contigo fora de jogo, diminui o interesse da parada. E se tu morreste, também eu serei capaz de morrer, sem que as ondas nem o céu nem o silêncio se transtornem. Cair em ti, cada vez mais longe da mísera ficção de mim.









in "Fazes-me Falta", Inês Pedrosa

quinta-feira, 7 de maio de 2009


Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento







Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto (1962)

Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu.
Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.
Fernando Pessoa

- Tu afirmavas que os seres que se gabam de explicar e de compreender o mundo são sempre incapazes de o modificar?- Sim - respondeu o mestre. - O Verdadeiro e o Falso são as escapatórias daqueles que se recusam sempre a tomar uma decisão. Porque a verdade é uma coisa sem fim.





Robert Musil, in "O Homem sem Qualidades"

segunda-feira, 4 de maio de 2009

sexta-feira, 1 de maio de 2009


(...)
Toco só aonde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E somos vadios do nosso corpo.
E estamos sempre fora dele porque estamos aqui.






Alberto Caeiro


Sabe, ouvi falar de um homem cujo amigo tinha sido preso e que todas as noites se deitava no chão do seu quarto para não gozar de um conforto de que havia sido privado aquele que ele amava. Quem, meu caro senhor, quem se deitará no chão por nós? Se eu próprio seria capaz? Escute, gostaria de ser, sê-lo-ei. Sim, seremos todos capazes, um dia, e será a salvação. Mas não é fácil, porque a amizade é distraída, ou, pelo menos, impotente. O que ela quer não pode. Acaso, no fim de contas, não o quererá bastante? Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós durante a vida inteira. Mas sabe porque somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, arrumar a homenagem entre o copo de água e uma gentil amante, nas horas vagas, em suma. Se algo nos impusessem, seria a memória, e nós temos a memória curta. Não, é o morto de fresco que nós amamos nos nossos amigos, o morto doloroso, a nossa emoção, enfim, nós próprios.







in "A Queda", Albert Camus