sábado, 3 de novembro de 2007



Depois uma pessoa cresce e habitua-se a sofrer. A esperar. A sonhar um bolo gigante a partir de 3 migalhas. A acreditar no impossível. A desejar o impensável. A querer que aqueles que amamos nos tragam o mundo numa bandeja. A isso chama-se carregar pianos. Até ao dia em que uma pessoa se cansa, baixa os braços, olha para o piano, encolhe os braços e diz agora basta. Basta de espera de abnegação, de sonhos, de promessas, de palavras mágicas e inconsequentes. Basta de promessas de amor, de castelos de areia, de adiamentos e hesitações, de ausências e dúvidas. E depois, o mundo vai abaixo. As casas, os prédios, as pontes, tudo se desfaz num estrondo imenso e assustador, que faz quase tanto barulho como um coração que está a bater com a porta. E como é o nosso coração que está a bater a porta, ainda custa mais.
E sentimo-nos a desmanchar por dentro. Não é a partir, é só a desmanchar, como se nada tivesse forma ou fizesse sentido.
(...)
Carregar pianos. Escada acima, quatro andares sem elevador. As costas doem, os braços tremem, as curvas da escada são uma equação impossível de resolver, tudo é difícil, tudo é esforço, tudo é inglório. E o amor transforma-se numa luta, num sacrificio, somos martires da nossa loucura, flagelados pela nossa obstinação e teimosia. E o pior é que, quando chegamos ao fim da batalha e o piano está lá em cima, não era aquela sala, nem aqula casa, nem aqula pessoa.



Margarida Rebelo Pinto in 'Artista de Circo'

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