quarta-feira, 4 de março de 2009





Não dormes comigo à noite quando eu me volto e torno a voltar na cama, buscando um sono que te apague de mim, que afaste as perguntas que então me devoram «Onde estará ele agora? Estará sozinho em casa, sofrendo por minha causa? Estará acompanhado, dando a outra mulher o que eu já não tenho dele? Como fará ele amor com outra mulher? Como o pode?» (…)Tentarás como eu substituir a paixão e o excesso pela ternura e pelo consentimento? Com essas a quem chamas amigas, farás amor como um amigo? (…) E quem dormirá ao teu lado de noite? (…) E que sabes tu do meu sono? Que imaginas tu das minhas noites? Saberás tu que as mais felizes são aquelas em que chego à cama e adormeço, sem sequer me lembrar de ti, nem querer, como na música de Simone “eu não me lembro, nem esqueço – adormeço”.

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Não quero ver o teu olhar triste e magoado que me acusa, sem defesa, que me condena, sem entender. Tu não entendes, mas eu preciso da tua força para sobreviver. (…)
Preciso de voltar a ver esse teu olhar cansado ao fim do dia, os ombros ligeiramente curvados, as palavras vagarosas, os olhos pisados pela luz (…). Quero-te vivo e igual a ti, como sempre te vi e te amei, para sentir-te ao meu lado para sempre, por maior que seja a distância fisica que criámos, a indiferença que tu imaginas que tenho e nunca tive nem terei.
Sei que se me pudesses ouvir me chamarias egoísta e dirias que, como sempre, é só a minha vontade que conta. estou sempre a falar contigo, mas tu não me ouves. Eu, porém, oiço-te sem que tu fales e quando falas, adivinho o contrário do que me dizes. Vejo-te à deriva e perdido e não te posso ajudar, porque tenho de me ajudar a mim. Tu não entendes, eu sei. Vives um conflito entre a tua força vital - que eu não te roubei, nem poderia - e a tua vontade de te deixares afundar, de te fechares no escuro da tua casa (…).Tu e não eu, se encarregará de destruir tudo o que vivemos, de acordo com a lei do excesso que é a única que compreendes: tudo ou nada, verdade ou mentira, amor ou ódio.

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Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu (…), como nunca foi de mais ninguém. Assim vou vivendo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer. (…)sei das horas sem sentido que deixamos para trás. E que interessa, afinal, saber se sou feliz, assim? Por que perguntas sempre isso(...)? Por que te satisfaz tão fraca desforra, como se a tua sobrevivência já só se pudesse alimentar da minha impossibilidade de ser feliz. E porque não és tu feliz, então? Tu que tens tudo para isso e que és livre, nada te prende e nada deves a ninguém senão a ti próprio? Por que permaneces amarrado a mim como o último marinheiro de um navio velho que nunca mais navegará e que, em lugar de embarcar noutro barco, noutro destino, permanece grudado na ponte de comando inútil, envelhecido com o seu barco, ressequido e amargo? Vive tu. Vive por nós. Não deixes que eu te destrua. Não me deixes mais esse peso. Naveguei até ao cais onde tenciono ficar e morrer, mas evitei o naufrágio em mar alto e não me deixarei afundar aqui, encostada à terra firme.






Remorsos, sim, é verdade, às vezes tenho remorsos. Vejo-me em sonhos como um pássaro negro, crepuscular, alimentando-se nas sombras, nos desperdícios, nos destroços, das vidas alheias. mas, afinal, o que se leva da vida, senão remorsos? Remorsos do que podia ter sido e não foi e do que se perdeu depois de ter sido. Remorsos do que devia ter sido dito e feito. Remorsos destes eternos desencontros, desta sensação de que nada existe no seu tempo certo, de chegar sempre tarde ou partir cedo demais. Por que será que a seguir à noite vem sempre a manhã e de manhã pesa sempre nos olhos e na alma o que se fez e desfez de noite - um corpo húmido deixado num lençol de seda e o ladrão furtivo desse corpo abandonando o quarto que não é seu, em direcção ao vazio de tudo o que lhe pertence, inutilmente?





Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
E a tua voz ouço-a agora, vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo.
E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.




Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares







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