segunda-feira, 23 de março de 2009


Consigo resistir a tudo menos à tentação, disse Óscar Wilde, o príncipe dos aforismos. A tentação de prevaricar – bela palavra do léxico nacional que felizmente escapou ilesa no novo acordo ortográfico – corre no sangue de qualquer ser humano e pode ser englobada em, pelo menos, dois pecados capitais: o da gula e o da luxúria, afinal tão parecidos.
A problemática de prevaricar reveste-se de diversos aspectos espinhosos que se complementam entre si. Em primeiro lugar, o acto de ‘pular a cerca’ implica mentira, omissão e pode ser considerado com toda a legitimidade uma traição. Em segundo lugar – e é aqui que tudo se complica –, uma vez praticado, o acto despe-se de pudor e a repetição instala-se. É como uma travessa de amêijoas: quando chega à mesa, nunca conseguimos comer só uma. São tão saborosas, ali mergulhadas no molho, indefesas e abertas, à espera de serem devoradas… É irresistível molhar o pão uma, e outra e ainda outra vez, iludindo-nos sempre com a ideia de que é a última até não sobrar uma gota de molho. E depois?
E depois instala-se o caos. A dúvida. Os pesadelos. A confusão mental. O medo. O arrependimento. O remorso. A vontade de redenção. O desejo enfraquecido de não voltar a enfiar o pé na argola, de nunca mais meter a pata na poça nem o dedo na ferida, até porque a ferida demora sempre tempo a fechar, mesmo que não doa. Quem vive na corda bamba sabe que viver assim não é fácil nem saudável. Pode ser um grande desafio, qual jogo de computadores em que o objectivo é chegar sempre ao próximo nível, mas em bom rigor o que acontece é que o nível vai descendo até ao prevaricador se sentir um traste, um lixo, uma porcaria.
Não existe nesta análise um pingo de moralismo, apenas uma visão pura e dura da realidade. Ainda que de peito cheio de orgulho ufano, não conheço nenhum bandido profissional daqueles com mulher em casa e esquemas por fora, ou solteirão inveterado sem capacidade de se fixar, que se sinta equilibrado ou viva feliz. A seguir a fases de grande euforia conquistadora, aquele que comete o erro de Bulhão Pato entra facilmente em estados de melancolia depressiva. Pior do que enganarmos os outros é enganarmo-nos a nós próprios – e não há nada que faça uma pessoa sentir--se pior do que andar sempre a fingir ser aquilo que não é.
Apesar de o Pinóquio matar o Grilo Falante à martelada para não ter de lhe prestar contas, a voz da consciência acaba sempre por falar mais alto e, depois, é impossível silenciá-la.Uma traição não é apenas uma troca de fluidos arrebatados com uma terceira pessoa; é uma expressão inequívoca de desrespeito para quem está ao nosso lado. Resistir à tentação é um processo longo e complexo que se inicia muito antes de a travessa chegar à mesa. Há que desenvolver uma estratégia completa e cortar o mal pela raiz. Acreditar na máxima ‘longe da vista, longe do coração’ – a qual nem sempre resulta, mas vale a pena tentar – e não telefonar, não enviar mensagens, não marcar encontros, a todo o custo não ver a amêijoa. Por melhor que ela seja, é um prato que pode sair caro, com risco de envenenamento, para o qual ainda não foi inventado nenhum antídoto eficaz.







Margarida Rebelo Pinto

1 comentário:

Arthur disse...

opa! gostei imenso deste texto

e tenho que reconhecer que não estava nada à espera que a autora fosse a Margarida, nada mesmo, pois eu até já achei piada à Margarida, quer dizer à sua obra, mas a determinada altura foi um completo disapointment, como comer sem sal


mas ela tem razão, quer dizer, na minha opinião, em dizer que o pior é mesmo nós enganarmo-nos a nós próprios