segunda-feira, 27 de abril de 2009



Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio
de um cais frio. Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.






Amalia Bautista em Tres deseos; Renacimiento, Sevilla, 2006

quinta-feira, 23 de abril de 2009


Estranho como o sorriso de um bisturi.
Íntimo como um olho sem pálpebra aberto na nossa mão.
Deslumbrante como o rumor da passagem de um unicórnio.
Fiel como a súbita seda negra do medo.
Temível como o brilho da espada de fogo de um arcanjo.
Submisso como as ondas que rebentam contra a praia de um peito.
Devastador como a clareza de um olhar num espelho quebrado.
Inevitável como a ferida feita pela chuva num coração de pedra,
o amor chega um dia à nossa vida e nós não estamos.








Abelardo Linares (Trad. Joaquim Manuel Magalhães)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Tu



Tu que, escondido, me espias; que me lês incógnito; que, omisso, julgas que me observas... não penses que me conheces.
Tu que, com a tua passividade, te pensas esperto; que, aninhado no teu silêncio, acreditas que me podes ter… não sabes é nada.
Em cada palavra minha, existe uma ratoeira; em cada frase, uma armadilha; em cada pensamento, uma farsa; em cada rosto, muitas caras, onde caiem os inofensivos e os predadores, onde se enganam e se perdem os que se pensam sábios. Como tu. Meu Amor.





(in Http://easfadastambemseenganamnocaminho.blogspot.com )

domingo, 19 de abril de 2009

sábado, 18 de abril de 2009



Há momentos em que parto não sei para onde. Navegação espiritual. Ou dispersão na terra abstracta, a única que se vê quando não se vê. São as grandes caçadas dentro de mim mesmo, a busca da magia perdida, uma palavra cintilante, uma perdiz imaginária, um sopro, um ritmo, uma espécie de bafo. Como o teu. Às vezes sinto-o, outras não. Mas sei que estás aí, algures, enroscado na minha própria solidão.







Manuel Alegre in "Cão Como Nós"

quinta-feira, 16 de abril de 2009



(...)
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
'Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
(...)





Fernando Pessoa

domingo, 12 de abril de 2009



Se antes de cada acto nosso, nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar.




José Saramago, in "Ensaio sobre a Cegueira"

sábado, 11 de abril de 2009

The Kill.






...

Desviou-se o paralelo um quase nada
e tudo escureceu:
era luz disfarçada em madrugada
a luz que me envolveu
A geométrica forma de meus passos
procura um mar redondo.
Levo comigo, dentro dos meus braços,
oculto, todo o mundo.
Sozinha já não vou. Apenas fujo às negras emboscadas.
Em cada esfera desenho o meu refúgio
— as minhas coordenadas.





Fernanda Botelho, de Coordenadas Líricas

sexta-feira, 10 de abril de 2009


Uma coisa é querer a verdade do nosso lado, outra é querer sinceramente estar no lado da verdade.








Richard Whately

terça-feira, 7 de abril de 2009



"Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimento do espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede; procure ser árvore."






Manuel de Barros

Devagar,
Hora a hora,
Dia a dia,
Como se o tempo fosse um banho de acidez,
Vou vendo com mais funda nitidez
O negativo da fotografia.
E o que eu sou por detrás do que pareço!
Que seguida traição desde o começo,
Em cada gesto,
Em cada grito,
Em cada verso!
Sincero sempre, mas obstinado
Numa sinceridade
Que vende ao mesmo preço
O direito e o avesso
Da verdade.





Miguel Torga

domingo, 5 de abril de 2009

quinta-feira, 2 de abril de 2009



O coração não se explica. É por isso que ele é o coração. E quando ele chega a explicar-se, é porque já é tarde demais.





Bertrand Vergely, O Sofrimento, p. 151 (EDUSC)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Run




...


Solidão: trata-se da mesma palavra para duas situações opostas, a solidão suportada, a solidão desejada.
A primeira é dramática; tenho necessidade dos outros e não há ninguém. Sou como uma chama que se extingue por sufocação, por falta de oxigénio.
A segunda é, em certos momentos, necessária para reencontrar a coerência de todos os materiais que se acumularam, reestabelecer conexões e se preparar para novos encontros.





Albert Jacquard, in"Filosofia para não-filósofos" (Campus, pg. 5)